quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Carta ao Carmelo na hora do seu funeral



Foto Jorge Palha «A queda de Ícaro»


Meu amigo, o Zé Lourenço disse-me ontem que só nos resta uma coisa depois da tua morte, que é atirarmo-nos dos prédios para cima.
E sabes que ele tem razão. Não nos resta outra alternativa que não seja lançarmo-nos dos quintos andares do nosso descontentamento para o céu. E revolucioná-lo se preciso for, e questionar Deus.
Ontem fiquei triste como se me tivesse caído um anjo em cima. Aquele que me acompanhou o tempo todo. Aquele com quem falava. O que me ensinou a voar.
Hoje trago as costas doridas do peso de carregar o seu cadáver nos ombros, mas tu, nesta hora em que te rezam missa, deves pairar sobre todos os teus amigos com aquele teu sorriso dado, que era uma espécie de abraço que nos envolvia.
Tenho receio de já não saber nomear as palavras, de me fugirem os significados, de os verbos me assassinarem repetidamente durante as noites de insónia.
Tenho medo dos que não sabem escutar o silêncio, dos que não conseguem já ouvir os pássaros, que a merda da super-bock esgote numa crise de valores sem precedentes.
Tenho medo destes políticos, dos consultores da palermice urbana, dos vendidos, dos tecnocratas, dos pastores de todas as igrejas.
Tenho medo.
Mas tu, tu não tinhas medo de nada, sequer que o céu te caísse em cima, por isso desafiaste as leis, ensaiaste o voo e voaste.
Que cada um saiba escutar as tuas últimas palavras como se fossem as primeiras de uma nova ordem.
E as crianças, conscientemente, coloquem flores a um anjo amigo que as proteja nos seus sonhos, e que esse anjo tenha uma barriga como a tua, um ar de quem sabe o que vem depois, e isso seja uma coisa redonda como o mundo.
Não fui ao teu funeral, que deve estar prestes a sair. Pensei que ao escrever-te esta carta estaria mais perto de ti, e assim não precisaria de reprimir as lágrimas, que sei, não gostarias que largasse neste dia chuvoso.
Choro-as agora em palavras que desato aos molhos, à espera que me visites sempre que te apetecer, e tenha o poema a mesmo som dos sinos, ribombando em cada um de nós.
São três e meia da tarde e nada será como dantes.

2 comentários:

  1. belíssimo texto para alguém que merece todas as palavras e todos os silêncios.
    o francisco não morreu, porque os poetas não morrem, apenas vão escrever para outro lugar!

    eu estive lá e trouxe-o comigo!

    saudações poéticas ao mundo inteiro!

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