quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Não posso com pimbas



Não posso com pimbas!

Não posso com pimbas nas artes de uma forma geral, que não estão só na música. Dos Emanueis aos Carreiras, passando pelos Marantes.
Estão por todo o lado e advogam o direito a publicarem livros, a exporem quadros.
Não posso com pimbas e por causa disso tenho o corpo cravado de chumbo.
É vê-los estrebuchar quando lhes digo na cara, que é como quem diz, nos sites da especialidade, que a sua escrita é de m…, os seus quadros uma bosta.
Não posso com pimbas.
Com as suas lamechices a que chamam poemas, ilustrados por meninos da lágrima ou lagos onde cisnes entrelaçam os pescoços num pôr-do-sol ao fundo.
Não posso com a forma depreciativa como me chamam intelectual, que não o sou, mas fosse isso pecado do qual tivesse que me arrepender.
Não posso com a pimbalhada que inunda os sites e os blogs, os livros de editoras reles e até as páginas dos jornais.
Não posso com poetas de meia-tijela sempre prontos a fazerem um poema-dedicatória:
«Este poema é dedicado ao Dr. Manuel Azevedo e sua maravilhosa equipa, que me operaram a um quisto na bunda…»
Não posso com pimbas, não posso com concursos de quadras de S. João, não posso com tipos que têm a mania que sabem pintar, mas que erram na perspectiva, no traço, na cor.
Não posso com manjericos pintados, com quadrinhas espetadas em palitos, não posso.
Não posso com quem abusa da inteligência de muitos, mas é aplaudido pela burrice de milhões.
Não posso com quem retira espaço a criadores bem mais meritórios, com quem ganha os concursos promovidos pelas câmaras Municipais sem saber ler nem escrever, com quem é aplaudido pela sua burrice.
Não posso com quem me chama vaidoso e arrogante, não porque me ofenda, que até o sou. Mas porque essa é única forma que tenho de ser diferente, o meu maior crítico e o mais mordaz.
Eu que no fundo, no fundo, até nem desgosto de pimbas, eu não posso é com o meu país.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Não posso com médicos veterinários


Não posso com médicos veterinários

Não posso com médicos veterinários. Há uns anos atrás tratavam os animais de quinta, metiam mãos calçadas com luvas por orifícios insuspeitos, analisavam urinas, aplicavam vacinas.
Hoje, muitos deles abriram clínicas, hotéis.
Cães e gatos, depois disso, passaram a sofrer de coisas tão humanas como otites, stress, cólicas intestinais, cataratas e afins.
Não posso com médicos veterinários.
Não posso com os preços que praticam, com as suas clínicas sempre muito limpas, decoradas com maravilhosas imagens dos fieis amigos, à mistura com publicidade aos milagrosos remédios para todos os males, quais farmácias de serviço não comparticipadas pelo estado.
Dantes, as carraças arrancavam-se à unha ou com uma infusão de drogaria em cinco partes de água, e as pulgas, enfim, eram uma espécie de animais domésticos, cuja coceira dava sempre algum prazer à falta de outros.
Hoje, têm nome estrangeiro os produtos que nos livram delas e custam os olhos da cara.
Os bichos tomam ampolas, comprimidos, são picados por agulhas finas. Fazem até depilação.
Não posso com médicos veterinários.
Gato atropelado, para além de segundo o ditado ter sete vidas, faz o dono perder parte substancial da sua, caso a compaixão e o amor ao animal o leve até estes estabelecimentos mercenários.
Se for preciso operar, a conta terá pelo menos três dígitos, acrescida de uma taxa de pernoita, mais os anti-inflamatórios e as vitaminas.
Cão ferido em refrega por cadela no cio, regressa a casa com uma espécie de abajur na cabeça, com as orelhas ligadas com gaze e adesivo, mais a indicação de muda de curativo a cada cinco dias, feita obviamente por técnico altamente credenciado, em clínica não menos especializada.
É por isso que não posso com médicos veterinários desta nova era de amor aos animais. Desta democracia abrangente que olha as também criaturas de Deus com ternura e compaixão, animais que fazem a alegria dos filhos, a quem falta afecto e carinho, assim substituídos, dizem que por falta de tempo dos casais modernos.
Nada tenho contra a bicharada de companhia, que hoje em dia vai das aves raras aos répteis, e ponho-me mesmo a imaginar uma piton stressada enrolada no pescoço de quem o merece.
Tenho eu próprio animais em casa e contas apertadas no final do mês, sou vítima também desta classe, cuja legitimidade em exercer não questiono.
Também eu acho que sofro de stress e tenho diarreias, cólicas e outras maleitas que me deitam por terra. Hoje ladro, amanhã mio.
E quando vou ao Centro de saúde da minha localidade para me tratar, que inveja eu tenho dos de quatro patas, desejoso que me façam uma festa na cabeça, que a enfermeira aperte a boquinha e me diga: bilu, bilu…
Não, em vez disso, espero e desespero nas filas, sou tratado com arrogância, curado tantas vezes com displicência.
Eu, que no fundo, no fundo, até nem desgosto de médicos veterinários, eu não posso é com o meu país.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Não posso com o Benfica



José Ilídio Torres escreve semanalmente no Jornal Barcelos Popular «Não posso com...»
Edição de 16/09/2010


Eu não posso com o Benfica, e nem coloco em questão a antiguidade do clube e os valores que o fundaram. Eu nunca poderia ser de um clube que foi o do regime durante décadas e deve parte do seu crescimento a essa associação.
Eu nunca poderia ser de um clube no seio do qual se generalizou a máxima “ Quem não é do Benfica não é bom chefe de família”, até porque a expressão “chefe de família” é também ela de cariz opressor, e tomando por consideração uma outra que diz que “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”, eu nunca poderia ser de um clube afastado das minhas raízes, mesmo que este se dissesse uma nação. Preferiria sempre a paisagem.
Depois, “Fado, Fátima e Futebol” não me servem enquanto homem vertical, na herança de quantos o foram antes de mim, fora de um contexto meramente biológico, numa linha de cultura, que não precisa da Amália para gostar do fado, de Fátima para ser cristão, do Eusébio para gostar de futebol.
Por isso é que eu não posso com o Benfica.
Também nunca me identifiquei com uma pretensa massa de gente que fala em milhões de iguais como se isso fosse sinónimo de força. Prefiro as imensas minorias. Aquelas que lutam por ideais que os outros não conseguem ver.
Pelas mesmas razões de que inúmeras vezes a verdade está naquilo que ainda não problematizamos, ainda não questionamos, prefiro descobrir simbolismos nos clubes esquecidos da periferia, nas suas sedes em bloco, no cheiro a bacalhau frito degustado com tinto, que pensar numa águia ensinada pairando sobre as cabeças dos amorfos, como se fosse a Fénix renascida das saudosas vitórias do Império.
A não filiação em qualquer corrente, a liberdade de poder enquanto criador assumir as minhas obras, não me deixa ser do Benfica pela razão óbvia de que se fosse pintor abusaria do vermelho, se fosse escultor da águia, se fosse escritor… da paciência de quem me lê.
Eu não posso com o Benfica porque um bom desportista não tem clube, nem se filia. Gere emoções e simpatias e luta pela vitória como forma de superação individual ou colectiva, na busca incessante da perfeição.
Eu nunca poderia ser de um clube que movimenta milhões e deve outros tantos. Que paga salários astronómicos, compra, vende e despede. Chame-se ele Benfica ou tenha ele outro nome qualquer.
Porque o futebol actual desvirtua de forma gritante o desporto. Porque a política se mistura nele como prostituta. Porque as verbas movimentadas são promotoras de negócios escusos. Porque é promotor de desigualdades. Porque goza com milhares de criadores geniais que não vêem o seu talento reconhecido, eu nunca poderia ser do Sport Lisboa e Benfica, mesmo sendo o orgulho de seis milhões, e por causa disso.
Mas, no fundo, no fundo, eu até nem desgosto do Benfica, eu não posso mesmo é com o meu país!

José Ilídio Torres

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Não posso com homens que dobram o pijaminha



Crónica semanal do jornal Barcelos Popular - 9/09/2010

Primeiro a calça, muito bem dobradinha pelo joelho, depois o casaquinho de botões, pela cava das mangas, rigorosamente a meio.
Não posso com homens que dobram o pijaminha e depois o colocam aos pés da caminha muito bem feita e esticadinha.
Que lavam os dentes a todas as refeições do dia e ainda usam fio dental para alcançar os lugares mais difíceis.
Que ainda vivem na casa da mãe viúva, e que na ausência de garagem, tapam todos os dias o carrinho com uma cobertura comprada no Continente.
Que verificam todas semanas o nível do óleo e da água, quer seja nos vidros, quer seja no radiador. Que juntam aditivos à gasolina, anticongelante e outras porrinhas, para assegurar a durabilidade do motorzinho do Fiesta.
Não posso com homens que dobram o pijaminha.
Politicamente, posicionam-se à direita, ou à direita da direita, mas não vão aos comícios do partido porque não gostam de confusão nem de cheiro a suor. Têm no entanto a fotografia do líder na cómoda, juntinho à imagem de Nossa Senhora de Fátima com os pastorinhos.
Gostam de fado, mas não apreciam Zeca Afonso nem os cantores de esquerda de uma forma geral.
Amam o Carreira, o filho, e o Espírito Santo.
Forram o comando da televisão com o plástico original da embalagem para não estragarem as teclas, usam camilhas nos sofás para não os sujarem, e o mais importante de tudo, descalçam-se ao entrar em casa, entalando os pézinhos nos chinelinhos de quarto, colocados muito direitinhos num cantinho do hall de entrada.
Não posso com homens que dobram o pijaminha.
Não posso com o seu jeito amaricado, onanista, de unhas muito bem tratadas.
Não posso com as camisas de botões no colarinho, as calças vincadinhas, os sapatinhos de verniz, quais Cinderelas.
Guardam tudo o que é recibo de despesa em capinhas organizadas por temas, fazem o IRS em 20 minutinhos antes da mamã chamar para comer a sopinha de nabos e penca, e que depois entregam garbosamente na repartição de finanças do bairro, os primeiros da fila.
Vão à missinha ao Domingo de manhã bem cedinho, para depois almoçarem religiosamente com a mamã ao bater das 12 horas.
A moça que um dia quis casar com um homem assim, nunca existiu no fundo.
E eu, também no fundo, muito no fundinho, até nem desgosto de homens que dobram o pijaminha, eu não posso mesmo, é com o meu país.