terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Espantalho


Foto do Google


Poeta de trapos cosido com remendos

É feito de farrapos e outros contratempos



Espantalho quase vertical girando aos ventos

Vive no meu jardim, um assim com um senão

A ninguém mete medo, poisam pássaros na sua mão



Poeta de trapos cosido com remendos

É feito de farrapos e outros contratempos



Se alguém me visita logo exclama:

- Ai que lindo palhaço você tem aqui

E o meu amigo nem sequer reclama

E eu faço de conta que não vivo ali



Poeta de trapos cosido com remendos

É feito de farrapos e outros contratempos



Há dias recitei-lhe um poema que escrevi

Falava de um certo espantalho quase feliz

A viver no meu jardim com um senão



Contava que fui sempre ele enquanto senti

Que na desdita e na ilusão me fiz

E as palavras poisavam na minha mão



Poeta de trapos cosido com remendos

É feito de farrapos e outros contratempos



Mas sabe a direcção dos ventos

Mas sabe a direcção dos ventos

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Menino da Terra


Foto de António Jorge Fernandes


Menino da guerra, hoje não matarás. Combato eu por ti.

Quero muito que te sentes na minha mesa, que comas até te fartares. Que te lambuzes de doces e sumos, que eu farei por ti a guerra, meu menino da Terra.

Hoje, nesta noite mágica de Natal, serei eu o violado, não tenhas por isso receio dos abraços, nem dos beijos, sequer dos afagos. Os Reis serão Magos.

Não te assustes quando as luzes momentaneamente se apagarem, e no escuro da sala só o fogo da lareira brilhar, que amanhã ninguém te vai queimar ou escravizar. Trabalharei por ti de sol a sol, darei as costas ao chicote daquele que se pensa forte.

Por isso desembrulha os teus medos junto a esta árvore de Natal, brinca com os meus filhos a sorrir, que hoje, hoje não precisas de fugir.

Refugiar-me-ei por ti numa tenda rota de balas, num campo de concentração farpado, mas tu, meu menino da terra, hoje vais ser amado.

Não te preocupes comigo, tenho dentro do peito tudo o que preciso. Uma arma que se chama texto e que dispararei por ti.

Mas hoje, meu menino da Terra, nem que seja só por um dia, serás igual àquele que está no céu e eu, eu desejarei que seja sempre Natal.


Nota: Desejo um Feliz Natal a todos os meus leitores e seguidores deste blogue.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Se não te apetecer escrever fica quieto - Dito por Hélder Magalhães (Moreno)


Se não te apetecer escrever fica quieto.
Mete um dedo na alma para veres se tem ovo. Se não tiver, acocora-te na mesma. Podes sempre expiar a culpa baseado no tamanho do cérebro.
Se não te apetecer escrever fica quieto, respira se for necessário. Senão for, deixa-te levar pela apneia de não pensares sequer nisso. Repousa redondo como o ovo que não havia.
Se não te apetecer escrever, não escrevas, fica quieto até que as estátuas se revoltem nas praças, os paralíticos recusem milagres para andarem, os cegos vejam o que nunca quiseram ver. Os surdos ouçam em dor.
Fica quieto!
Se não te apetecer escrever deixa-te ganhar musgo. Até ninguém te invejar. Depois, baseado em factos parcelares, constrói um universo de fósforos e pega-lhe fogo.
Vês o poema lá ao longe, cada vez mais perto?
Acena-lhe.
Mete o dedo onde quiseres. Iça uma bandeira por descargo de consciência, mas se te sobrar pano, mete as mãos no texto.
Afaga-o, envolve-o, derramo-o, bebe-o, fuma-o, esgana-o.
Mas se não te apetecer escrever fica quieto. Tão quieto que alguém pense que morreste, e depois, chame alguém que o ateste.
Se contratarem carpideiras para o teu funeral apalpa-lhes o cu quando estiverem distraídas a chorar. Se tiverem ovo tanto melhor.
Mas se não te apetecer escrever, fica quieto.
Sente este vento que não é de morte. É só o vento.
A escrita foi andar de baloiço com a vida e chegará tarde, não te maces por isso em acreditar que ainda hoje se deitará na tua cama. Se o fizer virá impregnada do cheiro de um outro.
Se a amares verdadeiramente, beija-a quando vier.
Se chegar.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Sessão na Escola EBI,2,3 de Vila Cova


Estive hoje a convite da Biblioteca Municipal de Barcelos nesta simpática escola do concelho.
Foi um prazer falar para uma plateia interessada de alunos do 9º Ano, com quem conversei da minha paixão pela escrita e desvendei alguns segredos dos quais normalmente não falo nas apresentações..
Agradeço toda a hospitalidade. A fantástica refeição e simpatia.
Aos dois alunos que musicaram o meu poema «Veneno» dizer-vos que adorei simplesmente.
Têm que gravar isso e enviar-me para eu colocar aqui no Blog.
Um abraço especial para as professoras envolvidas na organização e a todos o meu muito obrigado. Até breve.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Encontro do site Luso-Poemas


Foto de Cristina (Mim)
Organizado por vários escritores pertencentes ao site, naturais da região de Braga, decorreu em Tibães o VI Encontro deste espaço de internet que nos junta e nos faz partilhar textos e amizade.
Foi um encontro magnífico, que teve a presença de cerca de seis dezenas de Lusos e convidados, e um prazer fazer parte desta organização.

Mais fotos em: http://corpodecorcel.blogspot.com/2009/12/vi-encontro-do-luso-poemas-5-de.html

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Poema para o Ary



José Carlos Ary dos Santos
Poeta português, natural de Lisboa. Saiu de casa aos 16 anos, exercendo várias actividades como meio de subsistência.
Revelando-se como poeta com a obra Asas (1953), publicou, em 1963, o livro Liturgia de Sangue, a que se seguiram Azul Existe, Tempo de Lenda das Amendoeiras e Adereços, Endereços (todos de 1965). Em 1969, colaborou na campanha da Comissão Democrática Eleitoral e, mais tarde, filiou-se no Partido Comunista Português, tendo tido uma intervenção politizada, mas muito pessoal.
Ficou sobretudo conhecido como autor de poemas para canções do Concurso da Canção da RTP. Os seus temas «Desfolhada» e «Tourada» saíram ambos vencedores. Em 1971, foi atribuído a «Meu Amor, Meu Amor», também da sua autoria, o grande prémio da Canção Discográfica. Declamador, gravou os discos «Ary Por Si Próprio» (1970), «Poesia Política» (1974), «Bandeira Comunista» (1977) e «Ary por Ary» (1979), entre outros. Publicou ainda os volumes Insofrimento In Sofrimento (1969), Fotos-Grafias (1971), Resumo (1973), As Portas que Abril Abriu (1975), O Sangue das Palavras (1979) e 20 Anos de Poesia (1983). Em 1994, foi editada Obra Poética, uma colectânea das suas obras.
Personalidade entusiasta e irreverente, muitos dos seus textos têm um forte tom satírico e até panfletário, anticonvencional, contribuindo decisivamente para a abertura de novas possibilidades para a música popular portuguesa. Deixou cerca de 600 textos destinados a canções.
In: www.astormentas.com/ary.htm

Poema para o Ary

Olha quem ali está ao meio
E das palavras se alevanta
Madeixa sobre o rosto cheio
Em voz forte de quem nos canta

É o Ary, poeta de capote
À desfolhada de um sentir
Que do verbo faz o mote
Ser, fazer e construir

Olha quem ali canta a militância
Num cantar de putos feito
Quem nos afaga na constância
De um coração a bater no peito

Olha quem anda em nós à solta
Cavalo sem rédeas, chão de cidade
É o Ary da nossa vida toda
A pintar com palavras a verdade

Viverás eternamente a desgarrada
De quem arriscar o que escreva
De quem ame a vida na vida amada
E na morte pela vida se atreva

Olha quem ali está ao meio
E pelas palavras se agiganta
Um poeta sem epitáfio nem rodeio
A soltar-se livre da tua garganta

Até ao fundo do fim


Foto: António Jorge Fernandes


Derruba-me como um castelo de cartas,

Desconstrói-me em legos.

Apanha-me pelo Às de espadas. Trespassa-me.

Sacia-te em mim.

Prova-me inteiro a partir do osso.



Que achas de fazermos dessa verdade um livro?

Não, demasiado redutor.

Já sei, fazemos um filho de palavras a partir de

dentro.

E se nos sobrar tempo, rasgamos ao meio a dor.



Desafina-me até descobrirmos um sentido para a

palavra.

Algo que nos impeça de auxiliarmos a eutanásia

dos silêncios.

Algo que nos sacie de fome.

Sabes de alguém que possa carregar por nós o

fardo dos dias?



Eu por ti morria as vezes que fossem precisas,

Doava os olhos em vida mesmo que o tacto não

fosse garantido.

Fazia-me cigano e cortava os pulsos.

E como nunca seria tarde demais o começo daquilo

que nunca fomos

Brincávamos com Deus até do paraíso sermos

expulsos.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Desconstrutivite por José Silveira


Desconstrutivite por José Silveira | Music Upload

Desconstrutivite


Foto de António Jorge Jorge Fernandes



Demorei porque atrás de mim caminhava o homem imperfeito.
Não esperei por ele só por esperar.
Uma mulher subiu ao palanque de mim por uma corda.
Perguntar-me porquê é decidir.

Se subo a ela resvalo, se espero anseio.
Metade de mim é um todo de um outro
Fazer é destruir tudo o que não me penso.

Saber de um gato que de telhados tenha zinco,
Não é menos importante que fechar a porta com o trinco
A rima quando acontece precisa de uma que se abra,
Atrás de um feixe de cinema e gorjeta esconde-se sempre um beijo.

Desconstruo-me porque quero
Tenho só um deus porque matei o outro.
Foi em Vila Real detrás dos olhos
Num dia em que para amanhecer foi preciso pedir.

E veio o vento, sorrateiro dos pinhais
Soprar-me até ganharmos líquenes
E os anéis das árvores a comprometerem
O viver no meio de coisas tão banais como o amor

A solidão falava-me de um poço. Eras tu mas eu não sabia
Foi por isso que ajudamos um cego a subir a ladeira de nós
Por uma âncora de terra que se perguntava.
Ao fundo, a tristeza era um pássaro em fogo.
Podia ser o poema?
Podia.

sábado, 28 de novembro de 2009

Na fúria do nós - Hélder Magalhães





Hélder magalhães, autor de Vizela, e um amigo já, apresentou no passado dia 7 de Novembro, na fundação Jorge Antunes, o seu livro de poesia «na Fúria do nós».
Oportunidade para conhecer melhor um autor verdadeiro até à medula, comprometido com as causas que abraça e a partilha do seu amor às letras.
Os muitos amigos e conhecidos do Hélder lá estavam, para ouvirem as suas palavras tranquilas e dizerem os seus poemas.
Um final de tarde excelente.
O meu abraço Hélder.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

por um acaso só


Foto de António Jorge Fernandes

Por um acaso só

Por um acaso que era tudo dentro das coisas
Lembrava-se de um sorriso triste
O mais belo que vira.
Os olhos, de todas as tempestades. Faróis.
Tão tristes de tão luminosos, tão vastos de tão perto
Tão ao norte quão incertos.

Um vento que de gaivotas era grito
Um rosto em tranquilidade quase aflito
Um naufrágio no coração da vaga, um sufixo.
Um afago,
Que de tão precisado parecia não ter forças para se dizer.
Um fado.

Um rasto de mar em cada afecto perdido
Um verbo urgente na urgência do verbo amar
Um quase nada dentro das coisas
Um quase tudo que desatava o nó.

Lembrava-se de um sorriso triste, por um acaso só.

domingo, 22 de novembro de 2009

O nosso Director - Escritor


A turma do 5º A durante uma sessão na Biblioteca da escola.

Recebi da Filipa, da Sara e da Diana, minhas alunas na Escola de Távora no passado ano, este texto que me deixou até emocionado, e que fizeram no Clube de Jornalismo.
Estas pequenas grandes atletas foram campeãs de corta-mato do Distrito de Viana no escalão de infantis femininos e deram-me uma das maiores alegrias da minha vida de professor e treinador.
Gosto muito delas e de todos os alunos que durante dois anos conheci nesta escola.
Um grande abraço.

O nosso Director de turma do ano passado é um grande escritor. (de fábulas, poesia e contos tradicionais)
José Ilídio era professor de Educação Física e professor do clube de desporto da nossa escola. Era um professor exemplar do qual gostávamos muito. Ficámos com boas recordações e saudades dele.
Quando andávamos no 5ªA foi ele quem nos treinou e foi graças a ele que nós conseguimos agora estar numa boa posição, no desporto escolar. Ganhámos várias provas praticadas ao sábado: mega sprint, corta mato distrital. Foi um professor á maneira!
Este professor foi director de uma equipa de futsal, pai, educador, director da nossa turma e conseguiu dirigir tudo na perfeição.
Diário de Maria Cura, Beatriz e o Espelho Mágico, que faz parte de Contos de Água e Areia, foram os livros que ele escreveu.
Estes exemplares tiveram bastante sucesso.

Estava o gato alpendorado


Foto: António Jorge Fernandes

Estava o gato alpendorado, seguro no abismo, descansado nesse equilíbrio.
O homem, chegado por um fio de arame que se estendia até ao infinito, ao tentar afastá-lo para um último passo firme, escorregou e caiu.
A meio da queda lembrou-se de já ter sido pássaro num outro tempo, bateu asas e voou.
Quando podia finalmente usufruir da liberdade, regressou ao ponto de partida.
O gato sonolento deixou-se estar, alpendorado e perfeitamente equilibrado no abismo.
O homem pairou sobre ele batendo as asas como um querubim, e preparou vingativo um pontapé.
Quando o chutou, Deus fechou os olhos. Um bombista suicida fez explodir o mundo.
Ainda lhe restavam seis vidas, nas sete dos gatos, e na próxima já tinha decidido, queria voltar a ser baleia.
Deus adormeceu a pensar em coisas boas que ainda lhe podiam acontecer, e nunca mais acordou.
Veio uma nave e arrumou os cacos.

domingo, 8 de novembro de 2009

Já não me falta nada para ser quase feliz

Perdi uma vez o meu destino num jogo de cartas.
Tinha o Às, mas descuidei-me e alguém o escondeu na manga.
Desconfio de uma mulher de formas redondas, que me observava de longe. Ali logo ao lado do meu destino sem número na porta, cúmplice de um carteiro que nunca conheci pessoalmente.
Nunca falei com o meu fígado sobre o enjoo do mundo, mas um dia ele inchou tanto que me vi obrigado a reparti-lo numa mesa onde os comensais eram pobres escolhidos a dedo.
Houve um que me perguntou se o vento cortava.
Respondi-lhe afirmativamente em Braille, comendo eu próprio um pouco de mim.
Fiz de seguida um testamento para o mundo e registei-o na conservatória mais estreita de uma rua que parecia não ter fim.
Deus, ao fundo daquilo que parecia, era uma miragem que eu via por um telescópio que me espiava.
Recordo-me de termos jogado às cartas. De ele ter dito distraído que guardava armas em casa.
Acho que lhe falei de quase tudo que tinha atravessado na garganta, revoltado, entrecortando toda a eloquência que tinha quase calado, com um silêncio estranho que uma rapariga ao longe fazia com a rodela de um limão num copo vazio de Gin.
O Às nem sequer me fazia falta. Aliás, ninguém acreditou no meu bluff quando prometi uma terra para um povo de que já não me lembro.
Desde esse momento que não preciso do destino para adivinhar o amanhã. Construo-o com palavras e uma argamassa de areia e sangue, que um dia, se o mar estiver revolto há-de fazer-me o favor de destruir.
Quando eu for só uma pedra, arremessa-ma.

sábado, 7 de novembro de 2009

Ninguém morre e vai para o céu


Foto: António Jorge Fernandes
Ninguém morre e vai para o céu.
Até se pode morrer e ir para um lugar abaixo de nós. Raiz de árvore, seiva de flor, estômago de pássaro.
Nesse caso, a alma não levita, entranha-se na terra fecundando-a.
Há um espírito universal em tudo o que vive e provavelmente até numa pedra. Na conjugação de todas as coisas. Há um espírito que vive numa obra de arte, nas páginas de um livro, na anatomia da memória. Na história.
A passagem de cada um de nós pela vida alimenta esse espírito, o que nos coloca a todos como irmãos, filhos de uma mesma mãe.
Estar à espera de um céu depois de morrer, seja por via de uma licença passada pela igreja, seja por via da própria espiritualidade de cada um, é um pensamento profundamente redutor.
A função de cada ser nesta vida, é ser melhor. Signifique isso a capacidade de irmos perpetuando a beleza das coisas e das suas emoções, a nobreza dos gestos e da partilha, mesmo que cada um cometa erros, ou sinta que falhou num determinado momento.
O espírito de cada um realiza-se num todo. Não existe um qualquer lugar marcado no céu, não existe propriedade nem o seu direito.
A capacidade destrutiva do homem faz parte do ciclo infinito da vida. A terra será uma rocha um dia, mas haverá sempre uma semente de liberdade a romper o chão, a vir da água, a trepar às árvores, a nascer do ventre de uma mulher, seja até num outro lugar.
A história da terra escreve-se em poema, a vida é uma prosa só.

sábado, 31 de outubro de 2009

A Gina está uma senhora



Ouvi hoje, manhã cedo, a caminho do trabalho, a notícia de que a Gina fazia trinta e cinco anos.
Vinda para o país nos tempos imediatos à revolução de Abril, terminada que foi a censura, pela mão de um editor arrojado, que a descobriu, imagine-se, na conceituada Feira do Livro de Frankfurt, logo suplantou a crónica feminina, a revista ícone que vinha já de outros tempos. Ao que consta, vendendo-se de um dia para o outro 30.000 exemplares.
Um sucesso, a primeira revista pornográfica que entrou em Portugal, na euforia de uma liberdade sem medida, e ainda bem para quem aprende com os erros.
Venderam-se desde aí, presumo que milhões de unidades.
Conhecem-na por maioria os homens, mas por inerência directa, também as mulheres, que sempre as descobriram ao namorado ou marido. Na mesinha de cabeceira, em cima de um armário, ou num fundo falso secreto.
Eu quando era rapaz, guardava-as no mesmo sítio onde o meu pai também escondia as primeiras cassetes Betta, depois VHS. Num fundo de um relógio de pé, guardadas pelos pêndulos interiores. Único local da casa onde minha mãe, doente por limpeza, nunca se iria lembrar de limpar o pó. Ou se calhar não e também sabia…
A Gina começava sempre pelos preliminares da história, com o encontro, a roupa ainda vestida, coisa que hoje parece ter entrado em desuso. Havia sempre uma histórinha de escacha pessegueiro pelo meio, mas era sempre isso aquilo que mais excitava o pessoal.
Depois entravam as línguas em acção, empurradas por legendas de fraco recorte literário, coisa perfeitamente normal para o género.
Quem quisesse, logo no início deste tempo, e preferisse uma coisa mais soft, podia sempre assistir às primeiras exibições em cinema de «O último tango em Paris», e deleitar-se com dois dedos untados em manteiga e a sugestão de que algo se passava num buraco estreito.
Lembro-me de os meus pais me deixarem em casa da minha avó para o irem ver, e no dia seguinte estar um chocolate na mesinha de cabeceira. Não fosse esse detalhe, e eu nunca questionaria que tipo de filme tinham ido ver.
A Gina foi responsável por muita borbulha na cara, muita noite mal dormida, olhos encovados, fazendo disparar o consumo nos adolescentes de óleo de fígado de bacalhau, que suas mães assim o impunham para evitar uma fraqueza.
Na casa de banho, no quarto, ou na própria sala quando os pais não estavam, a Gina sempre se sentou com cada um.
Fosse rapaz, homem ou mulher, quem a lessem, num acto solitário, ou partilhado, a revista, ninguém o nega, sempre foi indissociável do prazer.
Compravam-se e trocavam-se, mesmo que tivessem muitas vezes páginas coladas.
Não sei se alguém, alguma vez chegou a apanhar aquelas moléstias muito faladas nesse tempo, em zonas púbicas, mas desconfio bem que sim.
Nestes 35 anos de Gina, muito Homem se fez amante pelos seus ensinamentos, numa prática demonstrada, que por repetição deu em casamento e filhos, ou não.
Neste dia, em que se comemora uma data tão significativa, mais logo pela tardinha, procurarei a minha fiel amiga no quiosque de sempre, de olhar baixo, não esquecendo de folhear primeiro outras revistas ditas normais, entregando com um assobio o dinheiro prontinho e zás que se faz tarde e bate no peito um coração.

Amas-me?


Foto: António Jorge Fernandes

Se me amares vais ter que me rasgar o peito. Depois, com a ajuda das pinças que te nascem dos dedos, abrir caminho pela pleura. O bisturi calejado para que não cortes nenhuma artéria.
Se me amares, vais ter que me sentir quase todo pelas veias. Rasgar-me por fora e por dentro para que percebas quem fomos, a meias.
Se na minha boca não houver hemorragia, podes beijar-me até não sobrar tempo, caso contrário, coze-a com fio norte e dedica-me uma reza gasta.
Se o meu coração parar de bater é porque estou de regresso. Acolhe-me como quem perdeu um filho e grita comigo.
Pode ser liberdade, se a ideia não te parecer vasta.
Sabes o que há sempre um coração pulsante para além da morte. Para além dos medos e da sorte que sentimos?
Imortal a palavra que circula em nós pelo sangue.
Amas-me?
Então, pergunta-me uma outra vez de onde vimos.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Filho Adónis de um Deus Desconhecido


Foto de António Jorge Fernandes

Nunca foi aos Jogos Olímpicos, mas fugindo do touro, salta por cima de muros em estilo Flop, caindo de costas em colchão de palha no celeiro da quinta.
Corre mais que o cão, seja em plano ou com obstáculos, e lança longe a vassoura que lhe metem nas mãos.
Levanta pesos bem medidos em sacos de ração, faz ginástica para apanhar as galinhas fugidas da capoeira. Pratica equitação numa égua coxa que nunca foi ensinada.
João Sem Nome, nunca foi aos Jogos Olímpicos, mas pedala como um desalmado para chegar à mercearia do povoado de recado cravado nas pernas, a cada vez que a voz de partida do patrão soa aos seus ouvidos como um tiro.
É rapaz novo ainda. Franzino porque come mal, voluntário à força do trabalho mal pago, por força de um destino sem progenitor conhecido. Filho de uma mãe que se perdeu no vinho, e nunca se encontrou em parte incerta que fosse.
A quinta é o seu estádio.
Por vezes, quando a imaginação lhe pede, solta-se dos sapatos rotos e calça-se de “bicos” de corrida, para voar pelos caminhos, qual pista sem marcações, qual gazela africana sem rumo, quase fugindo. Depois, regressa sempre com eles desapertados no pescoço, para se deitar com a noite, coroa de louros na cabeça. Glorioso. Feliz. Apesar de ficar instalado em colchão de feno e as telhas terem nome de estrelas.
Enquanto vai fechando os olhos, vai diminuindo o burburinho das bancadas, o aplauso mágico que o faz viver um sonho como se isso fosse a sua liberdade e o seu direito. Único.
Filho Adónis de um Deus desconhecido, que dorme no regaço da mãe natureza, João Sem Nome é feliz de se pensar grande, e isso é pensar mais alto, mais forte e mais longe.
As manhãs acordam-no pelo Galo altivo da frincha da janela de tábuas. Trazem um pedaço de broa nas fraldas e uma malga de leite quente nas tetas da dedicada Marinheira. É todo o alimento que precisa para sentir o cheiro ao novo dia, e chegar ao campo de treinos que é toda a paisagem que os olhos vêem.
Quando o sol se puser aborrecido no panteão que é celeiro, haverá mais um dia contado em cada passo de gigante, umas asas de Fénix na sua alma sempre renascida, um herói cuja vida nunca foi conhecida, mesmo sendo a vida sua amante.

sábado, 24 de outubro de 2009

Estou farto de apagar palavras


Foto de António Jorge Fernandes

Estou farto de apagar palavras. Neste frémito insano, nem reparo que me faltam órgãos a cada vez.
Ainda um dia serei só um lábio e pecarei pela inconfidência, mas quem me dera pecar por um beijo.
Já te vi fazer o pino nos prados, já corri para ti ceifando sorrisos que deixavas para trás, escapando. É por isso que tenho pernas nos braços e utilizo rótulas descartáveis para escrever, até mesmo cotovelos, mas a procura faz-se caminhando pelos olhos.
Podia pintar com a boca a tua demanda, e o pincel ser o prolongamento dos dedos que me faltassem, mas depois não saberia dizer amor que não fosse por enigmas, e faltarias sempre.
Por isso me entretenho a tecer as teias, vidrando os olhos com as sedas, nenhum de nós enviúva das esperas, há palavras que nos envolvem como aranhas.
Sei para onde caminho estranhamente quieto aqui.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A história quase triste de Belarmino Catota


«De passagem» António Jorge Fernandes

Estava quase a dormir na espera mas resolveu tentar a sorte quando ouviu chamar:
-Belarmino Catota!
Raio de nome lhe haviam de ter dado.
Velho Catota morrera de embolia durante um jogo do Estrelas da Noite”. Conta-se que não conseguia respirar. Tanto que morreu.
O Belarmino, não queria acabar como o pai. Sem glória, que o "Estrelas" até perdeu e houve porrada de criar bicho.
Concorreu à polícia.
O que o chamou, abotoava os botões da camisa a um bacalhau recheado, sem pudor nenhum. O palito ao canto sinalizava a atmosfera.
- Então você é que é o Belarmino de Bouro?
- De Catota. – Disse como se de repente o nome fosse nobre.
- Eu sei que é do Catota, fale baixo… O seu tio falou comigo… Não se preocupe.
- Não me diga?! O que anda com a minha mãe?
O polícia alçou o cinto até ao limite da decência, separando as águas apertadas.
- Responda às perguntas e logo se vê o que se pode fazer…
Belarmino não era burro. Coçou a orelha vinte e seis vez durante o exame mas respondeu a tudo.
Passou sem saber ler nem escrever, que é como quem diz.
A mãe mandou-lhe depois um par de frangos, batata e feijão da terra, que agora repartia com o irmão do falecido, para agradecer o favor.
Recebeu o diploma numa farda azul que não lhe assentava como uma luva. Houve festa e vieram até umas moças que no fim ainda receberam dinheiro.
Ansiava pela primeira ronda, tanto, que quando ela aconteceu, deu um tiro num pé logo ao sair da esquadra.
Quando se preparava para regressar ao activo que nunca experimentara, uns meses depois, sucedeu algo perfeitamente inusitado.
Quando entrava na esquadra, um tiro furtivo de um revólver roubado por um detido, atravessou-lhe o peito.
A última coisa de que se lembra é que eu estava a escrever a sua história.
Delírios mortíferos.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A noite era de queijo, veio um rato e roeu-a


«Grandeza» António Jorge Fernandes

A noite era de queijo, veio um rato e roeu-a. O guarda nem sequer deu por ela. Adormeceu na sua velha cadeira de baloiço, e dela para o dia.
Numa das ratoeiras que armou, o silêncio foi apanhado pelo pescoço.
Intrigado, pois nenhum barulho se ouvia na fábrica, sequer o dos seus passos, concluiu que o rato que lhe fugia havia roído os trabalhadores.
Sobravam-lhe máquinas na sua solidão, e lá fora pela janela que imaginou, havia um vapor parado.
Fumou a angústia num cachimbo de água que improvisou de uma viela, e ficou ali sentado, numa cadeira de baloiço que ía e vinha no tempo, imaginando um futuro já passado.
Na noite seguinte à última noite, havia um poema que precisava ser escrito.

domingo, 18 de outubro de 2009

assassino-me


«vida e morte...tão próximas» Foto de António Jorge Fernandes

Esfaqueei um texto até ele não poder mais. Do seu sangue ensaiei um poema.
Tenho um filho nos braços e sei que me vale nisso a pena.
Se eu ouvisse o que minha mãe me dizia, hoje era um vendido,
Por isso me dediquei a sangrar a vida, a rasgar os pulsos nas mãos.
Pode faltar-me tudo, mas não me falta um verbo sentido.

Os que me criticam, qual res pública, são todos meus irmãos.
Cães que não conhecem dono, prontos a morderem-me em protesto.
E eu, perfeito idiota, desta língua dispersa, crente e poliglota,
Sou do verso o gosto do vómito, um retorno ao ventre, indigesto.

Hei-de morrer como um gato que não escapou ao rodado.
Minhas tripas espalhadas pelo alcatrão.
Da minha boca nem um lamento, um suspiro em vão.
Mais me vale isso, que a morte naquilo para mim pensado.

Podia ter sido mestre ou advogado, da eloquência, um soldado,
Mas depois, não saberia o que fazer das palavras nascidas
Algures num prado, a luz das estrelas à luz das espigas, crescidas.

Meu destino é morrer a cada dia, a cada hora, a cada minuto
E escrever nos intervalos de tempo, resoluto.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O gato gay

Tenho um, mas preciso de não ter os filhos por perto para escrever sobre a nossa relação.
Apesar do suborno chorudo, não me largam a perna, usufruindo do facto de serem crianças e se estarem marimbando para a esquizofrenia do pai.
Dei-lhes uma sugestão lúdica antes de me zangar, mas só a cumpriram depois. Os filhos são a alegria de Deus.
- Ah, o gato gay!...
Tenho um. Não veio numa cestinha como o outro. Apareceu do nada como é habitual acontecer em minha casa com os animais.
Quando digo animais, refiro-me aos que vieram juntar-se à fauna autóctone de lagartos, lagartixas, cobras rateiras, os próprios ratos, esquilos, salamandras e sapos. Uma ou outra rã.
Há um pouco de tudo por cá.
Uma Dálmata que um dia aqui chegou pela mão apaixonada da minha mulher, emprenhou duas vezes do Goia, cão fiel tipo pastor alemão ou belga, que habita ainda a parte mais elevada da propriedade.
Foram vinte e dois cães.
Desdobrei-me em contactos para lhes arranjar um lar. Vinte e um no total, que houve quem quisesse dois.
Gaspar o cão poeta, dominava o território até desaparecer sem deixar rasto. Era um podengo mas não parecia, porque tinha dentro dele um homem, já o escrevi muitas vezes.
Temos saudades tuas meu velho.
No outro dia vi um cão igualzinho a ti. Sabes porque é que não eras tu? Não eram os teus olhos, meu amigo. O teu olhar falava.
Por falar nisso a Beatriz acaba de levar uma palmada no rabo por bater no irmão, mas merecia antes palavras, foi desatenção minha. Perdoar-me-á, que já falamos.
Combinamos que foi a última, e negociamos o futuro com um beijo.
- Ah, o gato gay!...
Vá lá saber-se porquê, não tem nome como o Dali. Esse herdou-o de um outro gato que foi assassinado por uma boxer que escolheu a nossa casa para parir. Já não sei quantos foram, mas dei-os todos.
Não me recordo bem, mas uma noite, depois da cadela tigrada ter chacinado uma quantidade apreciável de galinhas na quinta dos meus vizinhos, ter entornado todo o lixo da vizinhança repetidamente, roído tudo que estava a jeito, acabei, com uma faca espetada no coração ou talvez não, por soltar aquela força insaciável da natureza num lugar de um monte bem distante da casa do canavial, sitio muito apreciado e frequentado pelos coelhos, que a esta hora, desconfio, já foram todos devorados pelo seu apetite voraz.
Custou-me, acreditem, mas todos nós já falhamos uma vez na vida.
- Ah, o gato gay!...
Se calhar até nem é.


«Gaspar» - Foto do autor

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Shame on you Dona Maitê


Então Dona Proença?
Não é que Vossa Excelência, que tanto gosta aqui do país, vende livrinhos e faz teatro, entra em tudo o que é programa foleiro de jet-set para se promover, e em mais algumas coisas de que já não me lembro, tirou a máscara em 2007 e gravou um vídeo sem maquilhagem a dizer mal aqui do burgo.
E depois ainda se ri em estúdio com mais algumas histéricas?
Então?
Que é feito dessa sua imagem de Maria Madalena que o povinho tanto admirou?
Saiba, no entanto, que não somos todos «noveleiros» e muitos já não iam à bola consigo.
Bem sei que vos imitamos em muita coisinha, até nos carnavais sem tradição que por aí andam espalhados, de Ovar a não sei onde. Alguns de nós, até já falam como você, com sotaque e os pronomes no lado errado.
Sei que a própria selecção abriu portas aos brasileiros, e agora os golos se festejam com samba, mas olhe, há uma coisa chamada respeito.
Vossa excelência foi certamente mais uma que cresceu a ouvir anedotas do «seu Manel padeiro», e nem sabe que por detrás dessas pérolas de humor que fazem do português um ser das cavernas, há uma alma empreendedora que rasgou distâncias e se espalhou no mundo.
Já ouviu falar em dor de cotovelo?
Sabe lá você do nosso contributo.
Podemos ser uns tesos, europeus de segunda, incultos e analfabetos, mas saiba Vossa Excelência que somos feitos de dignidade, e alguns de nós até têm orgulho na dimensão do país, pois sentem que a sua pátria é bem maior que o espaço geográfico das nossas fronteiras.
Veja lá que até chamamos aos Espanhóis nuestros hermanos, e os tipos não nos ligam nenhuma e nem nos compreendem...
Somos bondosos sabe. Gente simples que gosta de receber as pessoas, que abre as portas das suas casas a quem nos visita. E vai vossa Excelência abusar disso?
Não fosse para hotéis armada em superstar, ficasse numa estalagem de aldeia ou numa pousada e arranjava logo um tipo para lhe consertar o seu pc e o seu mouse,
Uma coisa, uma só, não merecia o seu ar inteligente no referido vídeo. Aquela do número três ao contrário na entrada do prédio. Sabe porquê, sabe?
O carteiro vê o 3 desde o espelho da mota estando também assim atento ao trânsito.
Português que pensa vale por duas ou três como você.
Shame on you Dona Maitê.

sábado, 10 de outubro de 2009

Deus de mim me livre


Foto de António Jorge Fernandes «ternura»

Era um vento na página, lobisomem
Soprava lento como caracol
Um mar fisgado por um anzol
Um peixe com vontade de voltar a ser homem
Baleia sem veia, macaco sem teia, plateia
Era o sal das lágrimas à espera que o tomem
Era um Deus e ninguém sabia

Veio um sapo ter à folha com um mapa
Com ele uma esquadra pirata, esguia
Tomaram de assalto a lua para lhe roubar um rim

Passou a haver só o sol e isso foi o fim

Ninguém mais soube dizer escuro, breu
Restávamos só tu e eu no que faltava de mim

Se eras DEUS, porque não disseste?
Escusava a baleia ter entrado no mar
O sapo ser apenas um batráquio

Eu culpado de tudo o que me deste
Um amor de letras para me sufocar
Na ausência de guelras, um terráqueo

Se tiveres tempo não me deixes morrer
Escreva eu na demora de não saber

E alguém conjugue por mim o verbo amar

Apresentação de «Diário de Maria Cura» na FNAC - Braga


Ilda Gomes, minha amiga de sempre, uma Diva da música.


O autor e o editor, o escritor Xavier Zarco.

No passado mês de Setembro, fechou-se um ciclo de apresentações para este livro, que me levou a vários pontos do país e a três Feiras do Livro.
Agradeço á Fnac e à minha editora, que me tem apoiado em todas as circunstâncias.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Nunca mais afiarei facas na língua


Foto. António Jorge Fernandes -«até ao céu»

Nunca mais afiarei facas na língua, vou deixá-las a enferrujar à chuva. Depois cortarei com elas um dedo cada dia, mal burilados a marinar no fel da azia.
Nunca mais abraçarei um amigo de mãos abertas, ganharei a vida com os punhos.
Quando me gangrenarem as feridas, deceparei pelos ombros os braços. Pelo menos um, que o outro precisará de ti.
Quando for só um tronco e tropeçar nessa divida de gratidão, cairei repetidamente no teu regaço para que me espetes os polegares nos olhos e me fures os tímpanos com as agulhas dos teus crochés.
Viverei no escuro a pisar as armadilhas que semearás nos meus passos e roerei com os meus próprios dentes os pés.
Se te sobrar uma réstia de consideração espeta-me em terra negra e fria. Fertiliza-me com o estrume da tua bonomia.
Apetecendo-me, trincarei a língua até esta cair no chão, saltitante como rabo de lagartixa. Quando parar de mexer deixarei de te chamar.
Tenho a ambição de me metamorfosear num carvalho frondoso, para que no esquecimento dos dias procures a sua sombra, a sua serena tranquilidade e melancolia.
Se a trovoada vier não te preocupes, serei eu a falar pelo coração de um novo dia.
Usarei as tuas cinzas para me renovar neste tema. Nascer-me-ão dos braços dedos, finos e afiados sem lamento.
Se me apetecer serei poema, ou então só o vento.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O silêncio estava todo encolhido


«Olé» foto de António Jorge Fernandes (vaca das cordas - Ponte de Lima)

O silêncio estava todo encolhido, cabia num ovo. A arma engatilhada.
Primeiro um quase nada, depois a percepção do alvo escolhido.
Deus me livre dos galhos rangerem pelas botas, e o silêncio ser assim ferido.
O cano da arma tem só um olho, que o outro está ocupado a olhar-se para dentro.
Ao primeiro sinal de movimento, o que vem do interior, sobrepõe-se ao tempo.
A vontade de matar é uma coisa que nenhum órgão destila.
Nasce no hemisfério entre o alvo e a dor.

Uma arma apontada é um instrumento criado pelos medos
O gatilho, um prolongamento dos dedos.
A presa, essa é o troféu que perdeu os direitos para o predador.
Instrumento de prazer que não joga a seu favor.

Matam-se homens a cada instante, afinal só mais alguns entre iguais
E é o único momento em que os homens morrem como os outros animais.
Sem condição, agredidos, apontados, feridos.
A arma que mata também mata pelos sentidos.

Mas os animais, na sua diversa condição
Anteriores ao homem e na sua linha directa de evolução
Continuam a morrer na campa rasa de todos os mandamentos
Pelos donos da arca, malfeitores de todos os momentos

Shiuuu…
Nem mais uma palavra
Olha-me aquela orelha ali na latada…
A arma dispara
O animal tomba
O buraco no peito tem forma ronda
Um homem jaz naquela sombra.

sábado, 3 de outubro de 2009

Falta-me um scotch para a meia noite


António Jorge Fernandes - Abstracto

Lá fora a cidade rivaliza em brilho com as estrelas e um novo dia deixa-se adivinhar pelo arrumar dos copos e o olhar lei de um polícia gordo com vontade de fechar o turno.
Pela vidraça vislumbro-lhe filhos em casa, uma mulher que o ama à prova de bala.
Falta-me só um scotch para a meia-noite de todos.
Amanhã se me lembrar hei-de escrever sobre isto. A vontade que tenho de abraçar o polícia gordo que está em todos os meus sentidos e tapa parte da rua da minha loucura, já ali ao fundo quase quieta, chamando por mim.
Tenho um pé no poema, o outro corre rápido na frente para me avisar daquilo que ainda não aconteceu. Talvez seja por isso que sou feliz sem saber.
Amanhã, teimosamente, abrirei ruas para me dizer, urbanizarei o meu grito. Em cada casa me sentarei à mesa, em cada cama farei amor, e se me sobrar alento ensinarei filosofia às crianças.
Só me falta um gole de tempo.
O barman percebe isso e serve-me os verbos sem gelo.
Despeço-me deixando como gorjeta um pedaço do futuro como presente.
Ele, generoso, retribui com profissionalismo, apagando as manchas deste texto no balcão.

Soneto ao contrário


Foto de António Jorge Fernandes - «Unissono»

Nada me sobra, tudo me falta
Se amo com raiva e odeio com doçura
Por um coração que de tão quieto salta

Do poeta o homem mais a loucura
Do homem uma ave peralta
Desasada em fogo na sua envergadura

Meu anseio afogar-me no teu peito
Asfixiado em tudo o que não me dás
Enforcado nos lençóis do teu leito
Morte doce que me leva e traz

E se amanhã não for mais assim
E me faltar tudo o que já me sobra
Começarei então os poemas pelo fim
Serei maçã mordida e tu serás a cobra

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Um pássaro de certeza que pode ser uma vaca com asas


Foto: António Jorge Fernandes «Vigilante»

Nasceu-me um pássaro gago numa gaiola. Nem perguntei porquê.
Havia uma senhora que os tinha a três á coroa num viveiro. Vendiam-se como ostras.
Comprei três ovos que pareciam pérolas. Um guardei debaixo da língua. Chamei-lhe Alfredo.
Dos outros dois não soube mais nada.
Constou-se que os troquei a um marroquino por um cachimbo de água.
A verdade, é que todas as noites em que eu e o Alfredo, meu filho, nos sentamos à lareira daquilo que podíamos ter sido, um pássaro canta no relógio de cuco lá ao fundo.
É o fumo dos dias, que nos entra pelas goelas do mundo.

sábado, 26 de setembro de 2009

Quando eu for um pedinte sujo e andrajoso


Foto de António Jorge Fernandes «Vidas»

Quando eu for um pedinte sujo e andrajoso, dá-me esmola sem olhar. Depois, retira-te para dentro da tua felicidade até me voltares a encontrar. Estarei à hora certa das memórias, malcheiroso nessa esquina de nós.
Farei poemas em papel de merceeiro e venderei a retalho os dedos, pendurando todos os meus segredos na corda que me há-de enforcar.
Se a polícia vier, direi que sou um pobre diabo, meus poemas não servem sequer para limpar o rabo.
Se me baterem, hei-de guardar cada nódoa negra como relíquia de outras vidas, expor meu corpo por todo o lado.
Hei-de sentar-me na primeira fila da catedral, enojando as velhas carcomidas, hei-de papar a hóstia para escapar à fome.
Se me deixarem, talvez invada o púlpito. Se tiver força arranque até com as mãos o Cristo da cruz.
E os santos, se forem boa gente, lançarão pragas sobre quem não sente e farão justiça na casa de tão bô home.
Se me excomungarem, não apareçam depois com desculpas na hora da minha morte. Que todos têm direito ao perdão…Que basta uma só palavra…
A ser salvo, só eu decidirei se quero, morrer de verdade na terra ou de mentira no inferno.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Último pensamento


Foto: António Jorge Fernandes

Metade de mim é tempo, a outra metade a falta dele.

Dança comigo amor


Foto: António Jorge Fernandes

Num passo dado que pedia um doble, o teu sorriso vestia longo. E eu, bem engomado, quase todo desalinhado, acertava contigo o tempo.
O nosso compasso era dobrado, um allegro moderato que podia ser de Outono.
Trazias nos olhos metade daquilo que te amo, e na boca o resto.
Lembro-me de te afagar as costas e desabrocharem-me ouriços das mãos. Depois, com medo de te ferir nesse desejo, pedia-te emprestado o vento para me dizer.
Por isso enlaça-te no meu beijo, bebe-me. Sou a marcha lenta do lagar, indiferente de quem o pisa. Uma cantiga entoada que cheira a esperança.
Sou vinho fermentado, um rubro paladar de palavras nesta dança.

Escondam as criancinhas que vem aí o comunismo do Bloco de Esquerda


Tenho por vezes vergonha das gentes do meu país, que continua analfabeto e inculto. Mas mais me entristecem aqueles que o governam em seu nome. Uma casta miserável de políticos que não hesitam em remexer no mais hediondo ideário de estupidez, para fazer ressurgir fantasmas do passado, como se fossem imperadores do medo, da moral e do bom costume.
À merda.

domingo, 20 de setembro de 2009

Outonos



Foto: Banhistas - António Jorge Fernandes

Com o Outono a fazer-se anunciar pelas coisas habituais, sempre me fica a sensação de que isso é uma partida de Deus. Mais uma.
Na hora certa as castanhas, mesmo as mais tardias. O vinho a fermentar na cuba.
Do Verão de mim é também tempo de colher os frutos. Poemas, textos e outras coisas em prosa.
E depois, quando ao longe se anunciarem as tesouras de poda, estenderei os braços para que mos cortem pelos ombros. Serei um enxerto nas cinzas e renascerei dos escombros.
De uma certa forma é sempre Verão para quem não tem medo de morrer, disposto a colocar-se à prova no que ainda está para acontecer.

sábado, 19 de setembro de 2009

Exercício


(Foto do arquivo do autor...)

Tenho um quase medo de me repetir, por isso escapo antes do eco, antes do grito. O fim da minha rua é um palácio muito parecido com um circo.
Há um comboio fantasma que me leva e traz em viagem de mil espelhos, caras destorcidas em sorrisos, novos com caras de velhos.
Pelas vidraças passam poemas como se fossem postes, a iluminar as cidades dos que são sozinhos.
Sou o maquinista e o guarda da linha. Entre um e o outro há uma cumplicidade que prescinde das palavras na feitura das histórias.
Avançar, significa ensaiar caminhos.
Escrevo para adivinhar memórias.

Cada um é como cada qual



Encontrei esta imagem e ganhei um sorriso para partilhar.
(Desconheço a autoria)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Primeiro post(e)


Foto do meu amigo Jorge Fernandes

O meu coração cabe naquilo que o sol desta manhã prometeu, é uma bola que saltita.
Os meninos chutam-na divertidos no largo da igreja, marcando balizas entre o sonho e a realidade. Depois, só é golo se Deus quiser, que se senta comendo fruta junto á bandeirola de canto, por vezes distraído, deixando ao livre arbítrio a felicidade mais pura que há nas coisas simples.
Vejo-os correr para a bola que lhes bate no peito, como um coração que rola, fintando tantas vezes as suas próprias emoções, os seus desejos de vitória.
Um golo na própria baliza acontece junto com a troça. Nada de importante, nada que o tempo não apague. Amanhã verás, mesmo que amanhã não exista por agora.
E depois, um dia mais tarde, sabendo o teu papel em campo, poderás arquitectar as fugas, e saber até de que cor é a esperança.
É branca, quase da cor da relva, um rectângulo de emoções a cumprir-se por palavras.

A minha editora


http://www.temas-originais.pt/autores/jose_ilidio_torres.htm

Novo site, nova vida



«Diário de Maria Cura»
Este é o meu terceiro livro. Uma novela ou romance policial não o sendo.
A Editora é a temas originais.
O livro está á venda um pouco por todo o país.
Uma visita à minha página no site da editora dará todas as informações para a compra deste livro se assim o entenderem.
Criei este novo blog com o intuito de divulgar um pouco da minha escrita. Prometo ser assíduo na tarefa de editar aqui, poemas, textos, excertos e outras coisas que me dêm na gana.
A escrita é a minha vida e este lugar está aberto à participação de quem a sinta e a saiba amar.
Um abraço