domingo, 8 de novembro de 2009

Já não me falta nada para ser quase feliz

Perdi uma vez o meu destino num jogo de cartas.
Tinha o Às, mas descuidei-me e alguém o escondeu na manga.
Desconfio de uma mulher de formas redondas, que me observava de longe. Ali logo ao lado do meu destino sem número na porta, cúmplice de um carteiro que nunca conheci pessoalmente.
Nunca falei com o meu fígado sobre o enjoo do mundo, mas um dia ele inchou tanto que me vi obrigado a reparti-lo numa mesa onde os comensais eram pobres escolhidos a dedo.
Houve um que me perguntou se o vento cortava.
Respondi-lhe afirmativamente em Braille, comendo eu próprio um pouco de mim.
Fiz de seguida um testamento para o mundo e registei-o na conservatória mais estreita de uma rua que parecia não ter fim.
Deus, ao fundo daquilo que parecia, era uma miragem que eu via por um telescópio que me espiava.
Recordo-me de termos jogado às cartas. De ele ter dito distraído que guardava armas em casa.
Acho que lhe falei de quase tudo que tinha atravessado na garganta, revoltado, entrecortando toda a eloquência que tinha quase calado, com um silêncio estranho que uma rapariga ao longe fazia com a rodela de um limão num copo vazio de Gin.
O Às nem sequer me fazia falta. Aliás, ninguém acreditou no meu bluff quando prometi uma terra para um povo de que já não me lembro.
Desde esse momento que não preciso do destino para adivinhar o amanhã. Construo-o com palavras e uma argamassa de areia e sangue, que um dia, se o mar estiver revolto há-de fazer-me o favor de destruir.
Quando eu for só uma pedra, arremessa-ma.

Sem comentários:

Enviar um comentário