terça-feira, 6 de outubro de 2009

Nunca mais afiarei facas na língua


Foto. António Jorge Fernandes -«até ao céu»

Nunca mais afiarei facas na língua, vou deixá-las a enferrujar à chuva. Depois cortarei com elas um dedo cada dia, mal burilados a marinar no fel da azia.
Nunca mais abraçarei um amigo de mãos abertas, ganharei a vida com os punhos.
Quando me gangrenarem as feridas, deceparei pelos ombros os braços. Pelo menos um, que o outro precisará de ti.
Quando for só um tronco e tropeçar nessa divida de gratidão, cairei repetidamente no teu regaço para que me espetes os polegares nos olhos e me fures os tímpanos com as agulhas dos teus crochés.
Viverei no escuro a pisar as armadilhas que semearás nos meus passos e roerei com os meus próprios dentes os pés.
Se te sobrar uma réstia de consideração espeta-me em terra negra e fria. Fertiliza-me com o estrume da tua bonomia.
Apetecendo-me, trincarei a língua até esta cair no chão, saltitante como rabo de lagartixa. Quando parar de mexer deixarei de te chamar.
Tenho a ambição de me metamorfosear num carvalho frondoso, para que no esquecimento dos dias procures a sua sombra, a sua serena tranquilidade e melancolia.
Se a trovoada vier não te preocupes, serei eu a falar pelo coração de um novo dia.
Usarei as tuas cinzas para me renovar neste tema. Nascer-me-ão dos braços dedos, finos e afiados sem lamento.
Se me apetecer serei poema, ou então só o vento.

Sem comentários:

Enviar um comentário