sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Se não te apetecer escrever fica quieto - Dito por Hélder Magalhães (Moreno)


Se não te apetecer escrever fica quieto.
Mete um dedo na alma para veres se tem ovo. Se não tiver, acocora-te na mesma. Podes sempre expiar a culpa baseado no tamanho do cérebro.
Se não te apetecer escrever fica quieto, respira se for necessário. Senão for, deixa-te levar pela apneia de não pensares sequer nisso. Repousa redondo como o ovo que não havia.
Se não te apetecer escrever, não escrevas, fica quieto até que as estátuas se revoltem nas praças, os paralíticos recusem milagres para andarem, os cegos vejam o que nunca quiseram ver. Os surdos ouçam em dor.
Fica quieto!
Se não te apetecer escrever deixa-te ganhar musgo. Até ninguém te invejar. Depois, baseado em factos parcelares, constrói um universo de fósforos e pega-lhe fogo.
Vês o poema lá ao longe, cada vez mais perto?
Acena-lhe.
Mete o dedo onde quiseres. Iça uma bandeira por descargo de consciência, mas se te sobrar pano, mete as mãos no texto.
Afaga-o, envolve-o, derramo-o, bebe-o, fuma-o, esgana-o.
Mas se não te apetecer escrever fica quieto. Tão quieto que alguém pense que morreste, e depois, chame alguém que o ateste.
Se contratarem carpideiras para o teu funeral apalpa-lhes o cu quando estiverem distraídas a chorar. Se tiverem ovo tanto melhor.
Mas se não te apetecer escrever, fica quieto.
Sente este vento que não é de morte. É só o vento.
A escrita foi andar de baloiço com a vida e chegará tarde, não te maces por isso em acreditar que ainda hoje se deitará na tua cama. Se o fizer virá impregnada do cheiro de um outro.
Se a amares verdadeiramente, beija-a quando vier.
Se chegar.

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