domingo, 12 de dezembro de 2010

Onde o poeta punha o pé nasciam rosas



«Onde o Santo punha o pé nasciam rosas, e o povo lamentava que não fizesse o mesmo com batatas.»
Joaquim Namorado


Onde o poeta punha o pé nasciam rosas. Bouquets delas, finas e chorosas. O mundo era um imenso jardim florido.
Nem sombra de maldade, só um sol radioso que as fazia crescerem viçosas, dadas.
As criancinhas, com seus pés descalços e delicados, calcavam-nas sem se picarem, mas logo o poeta vinha atrás e consertava tudo com versinhos dedicados, distribuindo beijinhos e abraços às musas.
Tanta felicidade, tanto bem querer, tanta amizade para espalhar, que até os pobrezinhos, tão descalços como as criancinhas, em suas vestes de serapilheira, estendiam regaços à caridade literária, beijavam a mão ao poeta, gratos.
A guerra já não se fazia, não havia atentados à norma. Sonetos, sonetos.
Felicidade assim não tinha preço. Tinha sido uma conquista aos hereges, aos malditos que ensombravam a terra, feita à custa de armas sim, de muito sangue derramado, mas valera a pena.
Já ninguém ousava escrever palavras que depois de plantadas não abrissem em flor, já ninguém tinha dúvida de que o único tema possível em poesia era o amor. De que a amizade era cousa mui bela.
Casavam-se os poetas e as poetisas em cerimónias deslumbrantes. Eles de fraque, elas de véu e grinalda, e as criancinhas, descalcinhas e delicadas, sem se picarem nas rosinhas, segurando o longo manto.
Batiam-se palmas à passagem do cortejo nupcial. As musas à janela, donzelas e castas, mais suas mães de farta bigodaça, repousando os generosos seios nas colchas.
Que bom que era viver num mundo assim perfeito. Os velhinhos acarinhados, mesmo os que já haviam atingido a senilidade e a estupidez.
E as criancinhas, as criancinhas, não eram o futuro de coisa nenhuma. A elas, neste mundo a rebentar pelas costuras de fraternidade, de bonomia, de intensa solidariedade, restava-lhes somente o papel de calcarem as rosinhas, descalcinhas e delicadas, vindo o poeta atrás consertar tudo com versinhos dedicados.

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