domingo, 5 de dezembro de 2010

O homem que tombou no túmulo de um livro



Nota: Escrevi este texto em 2008, a partir de uma sugestão de Sandra Fonseca, num dia em que estava a escrever compulsivamente e me bastava um título ou uma ideia para o fazer.
Hoje redescobri-o e lembrei-me desta amiga, que foi fundamental em 2009, enquanto minha confidente, durante a escrita de «Diário de Maria Cura», romance que editei nesse ano pela Temas Originais.



Um homem sai de casa numa manhã de nevoeiro sem saber para onde ir. Perdeu o emprego logo depois de encontrar a mulher com o patrão, que também era o seu.
Perdeu até o cão, que gostava mais das festas do seu chefe.
Parecia-lhe tudo azedo naquela manhã, até o café, por mais açúcar que lhe deitasse.
Sem saber que rumo tomar na sua vida, de mala na mão, que os tempos da grande cidade eram outros, deambulou pelas ruas até os olhos lhe doerem nos pés.
Da relação passada não trouxera mais que um livro, cuidadosamente amparado por folhas de jornal amarrotadas, numa volumosa mala.
A mesma que sua mãe lhe dera de enxoval para casar com a rapariga da cidade que não lhe largava o pescoço, sempre manchado de um baton de terceira categoria.
Na aldeia foi uma escandaleira, quando a rapariga que conheceu no escritório, apareceu de mini saia tão curta que todos tinham que olhar para cima, feita de um andar rebolado que fez babar meio tasco do Jeremias, e o fez vender mais de um garrafão no resto do dia.
Mesmo assim casaram-se. Eles os dois e o padrinho numa escapadela.
Agora não lhe restava nada, nem mesmo as memórias do passado, que até com as fotografias ela tinha ficado….
Apesar da profunda tristeza, guardava numa mala que não largava por um minuto, o seu maior tesouro: um livro.
Um livro que tomou em mãos quando chegou a uma espécie de prado verdejante, bem longe do ruído dos carros, do ar poluído da selva urbana.
Acariciou-lhe a capa, que encostou com ternura à face, fazendo um esforço para não chorar lágrimas que a molhassem.
Abriu-o na última página e começou a caminhar enquanto lia, deixando para trás a mala de toda uma vida, carregada de vazio.
Absorto pela leitura, já entrado no último parágrafo, no exacto momento em que olhava o ponto final que terminava o livro, tombou dentro de um túmulo aberto para receber um homem, naqueles cemitérios à americana que agora se fazem.
Quando o encontraram, repousava tranquilo, de mãos cruzadas no peito de um livro, a cujo título o coveiro haveria de afastar o pó:
“A Ponte para a eternidade”

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