domingo, 21 de novembro de 2010

Vou suicidar-me no primeiro raio de sol



Foto: João Luz


Vou suicidar-me no primeiro raio de sol. Já testamentei os meus parcos haveres: todo o sal do mar e as sereias pornográficas que copulam com o vento norte. Uma gaivota de crude.
Já me despedi de quem gosto: poetas sem lei, que vivem para além da morte, ledos.
Dei carta de alforria às prostitutas que trabalhavam nas esquinas dos meus olhos, encerrei os bordéis sujos nos meus dedos.
Promovi os pedintes a monarcas, fiz dos enjeitados nobres patriarcas.
Deixei dito que mais nenhuma criança cresceria antes do tempo, que a única lei vigente passaria a ser a da brincadeira e dos afectos.
Que o poema fosse a única matéria leccionada nas escolas, sítios amplos sem portas, janelas ou tectos.
Assinei papéis doando os meus orgãos: o fígado para ser transplantado num homem são, mas azedo e sem coração.
Os pulmões experimentados num réptil, os meus rins enxertados em árvores de fruto.
Paguei adiantado às carpideiras com o dinheiro sujo que ganhei amamentando o sistema, mesmo não tendo tetas, pregador de certezas, pastor crente de um rebanho de petas.
Espero que chorem, esperneiem, larguem baba e ranho por mim, e no final das exéquias se sirvam canapés, se leiam poetas malditos e o vinho esgote.
Para onde vou não preciso de memória, a palavra saudade deixará de fazer sentido, o próprio verso, mote.
Vou suicidar-me no primeiro raio de sol. Espero que me trespasse de luz o coração.

3 comentários:

  1. O seu sucesso seguirá tão rapido, e iluminará tanto quando esse primeiro raio de sol...
    Abraço
    Delfim

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  2. José Ilidio, tu não serves nada frio. Escreves com temperatura qb para abanar consciências e encheres os silêncios de significados. Quem escreve assim não se "suícida" nunca, renasce a cada escrita, "vive para além da morte". Gosto mesmo do que escreves - poeta sem lei.
    Dulce

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  3. Suicidar-te-às mas as tuas palavras ficarão para sempre.
    Excelente texto poético.
    Adoro ler-te.
    Beijinho.

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